domingo, 6 de novembro de 2011

Felicidade Desesperadamente - André Comte-Sponville

"Imaginem, senhoras (pois é nesse sentido que a coisa costuma acontecer, mas se as senhoras quiserem inverter os papéis não sou eu que vou me opor), imaginem que um homem aborde as senhoras na rua, esta noite ou amanhã, dizendo: "Senhora, senhorita, estou feliz com a idéia de que você existe!" Como não pode excluir que ele tenha tirado essa idéia de minha conferência, eu preciso lhes dar alguns elementos de resposta, com os quais farão o que quiserem... O que poderiam responder? Isto, por exemplo:
"- Caro senhor, agrada-me muito saber disso. Está feliz com a idéia de que existo; ora, como está vendo, eu existo mesmo, logo vai tudo bem. Boa noite."
Ele sem dúvida vai tentar retê-la:
"- Espere, não vá embora: quero que você seja minha!"
- Ah, agora, meu caro senhor, a coisa muda. Releia Spinoza: 'O amor é uma alegria que a idéia da sua causa acompanha.' Concorda?
- Sim...
- Nesse caso, o que é que o deixa contente? Será que o que o deixa contente é a idéia de que existo, como entendi primeiro? Nesse caso, concedo-lhe que você me ama, alegro-me e lhe dou boa-noite. Ou será que o que o deixa feliz é a idéia de que eu lhe pertença. como temo ter compreendido agora? Nesse caso, o que você ama não sou eu, é a posse de mim, o que significa, caro senhor, que você só ama a você mesmo. E isso não me interessa nem um pouco!"
Vocês sem dúvida o deixarão desnorteado. Ele vai gaguejar, engasgar, replicar por exemplo:
"- Não sei, estou apaixonado, ora bolas!
- É exatamente o que estou tentando lhe explicar! Você está apaixonado, você está em Platão, você só deseja o que não tem: eu lhe falto, você quer me possuir. Mas imagine que eu lhe satisfaça suas investidas... De tanto se sua, de estar presente todas as noites, todas as manhãs, necessariamente vou lhe faltar cada vez menos, por fim menos que outra ou menos que a solidão. VIvemos bastante, você e eu, para saber como isso acaba... Quer mesmo que recomecemos essa história mais uma vez? A mim não interessa mais, a não ser... a não ser que você seja capaz de amar de outro modo, de ser spinozista, às vezes pelo menos, ou de viver um pouco em Spinoza, quero dizer, amar o que não lhe falta, regozijar-se com o que é. Nesse caso, poderia me intessar. Pense nisso. Aqui tem meu telefone."
Não há amor feliz, nem felicidade sem amor. Não há amor feliz, enquanto falta ao amor seu objeto. Não há felicidade sem amor, enquanto a felicidade se regozija.
Há uma coisa que a falta não explica: que existam casais felizes às vezes, que haja um amor que não seja de falta, mas de alegria, que não seja de tédio mas de carinho, que não seja de frustração, mas de prazer, que não seja de ilusão mas de verdade, de intimidade, de confiança, de desejo, de sensualidade, de gratidão, de humor, de felicidade... "Eu te amo" eles dizem: "sou tão feliz por você existir, feliz por você me amar, feliz por compartilhar sua cama, sua felicidade, sua vida." Todo casal feliz é uma recusa do platonismo. Para mim, é um motivo a mais para gostar dos casais, quando são felizes, e desconfiar do platonismo.